Rita Marta
Sociedade Portuguesa de Psicanálise
Mensana – Saúde Mental (www.mensana-mentalhealth.com)
Resumo
Em junho de 2024, um grupo de especialistas de todo o mundo — psicanalistas, psiquiatras, geneticistas, biólogos, filósofos, sociólogos e antropólogos — reuniu-se em Paris para discutir e encontrar soluções urgentes para o problema do crescimento exponencial e global da disforia de género entre adolescentes.
Quais são as transformações culturais e sociais responsáveis por este fenómeno, que conduz a soluções imediatas e literais, sem qualquer questionamento, através de bloqueadores da puberdade ou de cirurgias de mudança de sexo, com riscos médicos e psicológicos significativos?
Pode a psicanálise compreender e transformar esta “loucura colectiva”, onde o desejo é uma imposição, o subjectivo uma realidade, e o proibido é destruído – “É proibido proibir”, “É proibido compreender” – e onde parece ter desaparecido a separação entre manifesto e latente? Estará Freud desajustado em “O Mal-Estar na Civilização” quando escreve: “deve o indivíduo gerir o conflito entre os seus impulsos individuais e as exigências da sociedade”?
Ao longo desta obra, a autora viajará no tempo para compreender o lugar do corpo no sintoma – desde o corpo simbólico (sexual e proibido) presente na histeria, ao corpo literal (omnipotente e concreto) na disforia de género – relacionando-o com as mudanças socioculturais globais.
Iniciarei a minha apresentação com três expressões que sintetizam as ideias que irei desenvolver ao longo deste documento:
a) Um psicanalista não pode deixar de o ser: a identidade psicanalítica vai muito para além da nossa atividade clínica; Muda radicalmente a forma como vemos o mundo.
b) “A doença psiquiátrica ocorre na fronteira entre o indivíduo e a sociedade, e as doenças evoluem ao longo dos anos” (David Bell, 2021).
c) “Se se sente mal com o seu corpo (sexual), é porque é do género errado” (Ideologia de Género)
No século XXI, a sociedade vive um paradoxo: prioriza a liberdade/vontade do sujeito, onde o corpo e a identidade se tornam descartáveis e modificáveis — seja a cor do cabelo, dos seios ou das rugas, ou ainda a escolha do sexo e da cor dos olhos do bebé nas novas tecnologias reprodutivas, seja o sexo biológico —, o que contrasta fortemente com a ausência de liberdade de pensamento que domina a ideologia de género.
Como chegámos aqui?
- Dora
A minha primeira paciente psicanalítica, a quem chamei Dora porque parecia ter vindo directamente do século XIX e poderia ter sido paciente de Freud, passou os dois primeiros anos em silêncio no divã, resistindo à relação de traição do objecto materno com a analista terceira e à penetração das suas interpretações. Tal como a Dora de Freud sofria de afonia, a minha Dora faltava às sessões analíticas por causa de infecções recorrentes da garganta, até que finalmente me revelou o seu sintoma fundamental: a dispareunia (dor sexual, com o namorado), a proibição da sexualidade e a confusão oral-genital própria da histeria.
O que aconteceu ao corpo proibido e simbólico da histeria?
Qual é o lugar simbólico do corpo no século XXI?
- Fénix
Vinte anos depois, uma jovem de vinte e poucos anos entra no meu escritório, de cabelo curto e voz fraca, escondida atrás de uma t-shirt comprida que lhe chega aos joelhos. Phoenix, o nome sem género que Filipa criou para si própria, vem ter comigo em busca de uma declaração para confirmar a sua identidade transgénero: Não gosto do meu corpo porque nasci no corpo errado, não sou mulher, a minha identidade de género é masculina, sou transgénero, preciso de mudar o meu corpo.
Em criança, amava o seu corpo de menina, imaginando o dia em que usaria um biquíni, mas quando este se tornou de facto um corpo de mulher, com o início da menarca e das formas femininas, sentiu um grande desconforto, uma sensação de estranheza e uma rejeição deste corpo feminino.
Um corpo feminino que se tornou estranho, vivido com grande desconforto, principalmente na sua manifestação exterior, perante o olhar dos outros (ancas, seios), que só encontrou alívio quando descobriu um nome para si nas redes sociais: sou transgénero.
Quando lhe pergunto, em resposta ao seu desejo de tomar hormonas masculinas, se se sente como um rapaz, ela nega: é contra o sistema binário. E se ela quisesse um pénis, responde que não gosta de sexualidade.
Mais do que ver-se ao espelho, não suporta a ideia de que os outros a vejam como uma mulher, por isso inventou um nome para si — Fénix (curiosamente, um nome que não é nem feminino nem masculino, uma figura mitológica que renasce das cinzas) — e pede para ser tratada com pronomes masculinos.
Mas se, na infância, o seu corpo era vivido com tranquilidade e prazer, as suas relações com os outros eram marcadas por sentimentos de estranheza: sempre muito tímida no contacto com pessoas que não conhecia, escondia-se quando os pais recebiam novos amigos, manifestando uma “angústia do estranho”. Brincava com brinquedos típicos de ambos os sexos, mas, como diz, utilizava-os de uma forma diferente dos outros, como se também fossem vivenciados como objetos estranhos.
Sugeri psicoterapia para a ajudar a compreender o seu desconforto com o seu corpo feminino e a perceber quem ela realmente era. Mas Filipa/Phoenix sempre se mostrou muito relutante em questionar a sua identidade auto-identificada como ‘trans’, bem como a solução baseada na conversão de género masculino. Mantém-se firme no seu desejo de ter um relacionamento que lhe permita iniciar um processo de “transição”.
3. Uma sociedade trans?
Há vários anos que me interesso pela questão dos problemas de género, ou angústia de género, não só por razões clínicas (estes casos raramente requerem ajuda clínica), mas principalmente porque me deixa perplexo e curioso o facto de, como diz David Bell (2021), ser uma manifestação (um sintoma não só individual, mas também social) que está a ganhar força no século XXI. Porque está imbuída de resistência, rigidez e concretude, que se manifesta não só na prática clínica de pessoas que expressam sofrimento/rejeição do seu sexo biológico (disforia de género) e necessidade de transformação literal do seu corpo biológico (transgénero), mas também na própria sociedade, que insiste num olhar normalizador, se recusa a questionar e condena como transfóbicos aqueles que o tentam fazer. Uma sociedade vigilante e condenadora (uma sociedade do Superego), mas também fabricante de rótulos, em vez de tolerante e reflexiva.
Como defende David Bell (2021), vivemos numa sociedade que parece ter passado de uma sociedade progressivamente mais tolerante e fluida (em termos de raça, aparência, procura de igualdade de direitos e expressão de género) para uma sociedade rígida, concreta e intolerante ao pensamento. Diria que passámos de uma sociedade repressiva na época do nascimento da psicanálise para uma sociedade normalizadora e politicamente correta nos dias de hoje. Como diz a psicanalista italiana Simona Argentiere (2009), as questões de género tornaram-se uma batalha política, e cabe-nos a nós, psicanalistas, recuperar o vértice psicanalítico.
Pela minha parte, procurei compreender com as ferramentas ao meu dispor: o meu pensamento psicanalítico e os dados da minha prática clínica.
Foi nesta busca de sentido que, em 2019, participei no primeiro encontro da IPA (Associação Psicanalítica Internacional) sobre questões de género, em Bruxelas – “Perspetivas psicanalíticas contemporâneas sobre a diversidade de géneros e sexualidades” – mas rapidamente compreendi que, mais do que um lugar de questionamento e compreensão psicanalítica, era uma luta política para normalizar as diferentes expressões da sexualidade contemporânea. As perguntas do público (psicanalistas) sobre as apresentações foram tomadas como manifestações de transfobia….
Este encontro de 2019 deixou-me também a recordação de que os casos apresentados (M para F) eram de rapazes impedidos de expressar o seu lado feminino na infância (ex.: vestir-se com as roupas da mãe) e a observação empírica de que nos últimos anos, no sentido inverso, tem havido um aumento de casos de redesignação sexual (F para M), o que me fez questionar como é que isto poderia ser compreendido numa sociedade que cada vez mais “permite” às mulheres expressarem o seu lado masculino – vestir calças, ter o cabelo curto, ser empreendedora e estar em posições de poder, enquanto crianças, ser Tom Boys e bons jogadores de futebol, como foi o meu caso… Rapidamente compreendi que as questões relacionadas com a bissexualidade psíquica não conseguiam, por si só, explicar o problema da disforia de género.
- O Congresso da OPAS em Paris
Alguns anos mais tarde, em junho de 2024, o destino, ou a sorte, levou-me a Paris, onde pude participar numa grande conferência multidisciplinar – “A criança no centro das mudanças antropológicas: pode a criança ainda crescer?” – organizado pelo Observatório da Pequena Sereia (OPS) e pela Sociedade de Medicina Baseada na Evidência (SEGM). Tratou-se de um simpósio internacional realizado no Palais du Luxembourg, com psicanalistas, psiquiatras, médicos, geneticistas, biólogos, filósofos, sociólogos, antropólogos e juristas – da Europa, Estados Unidos, Austrália, Canadá e Nova Zelândia – que se reuniram para discutir, compreender e encontrar soluções urgentes para o problema do crescimento exponencial da disforia de género entre os adolescentes de todo o mundo.
Este encontro, organizado pelo Observatório da Pequena Sereia, presidido por Céline Masson, psicanalista e professora universitária, e Caroline Eliacheff, pedopsiquiatra e psicanalista, nasceu da preocupação com o aumento maciço de novos diagnósticos de “disforia de género” e identidade trans entre menores.
Nos Estados Unidos, uma em cada 14 adolescentes identifica-se como transgénero, enquanto que, em vários países, os médicos não têm qualquer controlo ao prescrever hormonas bloqueadoras da puberdade, com riscos médicos, a jovens que sofrem de disforia de género, que frequentemente ameaçam cometer suicídio se os seus desejos não forem atendidos.
Em março de 2023, uma nova lei espanhola permite que os menores passem pela transição de género sem o consentimento dos pais. O terapeuta, impedido de exercer a sua profissão (explorar, discutir, procurar causas, propor soluções), é obrigado a confirmar o que a pessoa sente e a fornecer-lhe tudo o que esta lhe pedir, sob pena de multa em caso de recusa.
Quais são as transformações culturais e sociais responsáveis por este crescimento exponencial, que conduz a soluções imediatas e literais, a ações inquestionáveis, através de bloqueadores da puberdade ou de cirurgias de mudança de sexo, com consequências psicológicas e médicas (cardiovasculares, cancro, osteoporose, infertilidade)?
- Ideologia de género
Uma história que começou há mais de 10 anos, quando um movimento ativista procurou definir os direitos e os padrões de tratamento médico para as pessoas que se identificam como “transgénero”, pressionando os profissionais de saúde a adotar as suas recomendações para ajudar as crianças que se sentem “trans” a fazer a sua transição social e médica, sem que o seu pedido fosse questionado. O “Observatório da Pequena Sereia” surge como um alerta para que os clínicos não possam aceitar como realidades científicas proposições provenientes do ativismo e dos media sociais, como a recente multiplicidade de géneros (queer, género fluido, agénero, xenógénero, etc.), que levam os adolescentes que sofrem com o seu género a serem influenciados por esta mediatização enganadora:
“É extremamente perigoso, ideologicamente, que o desconforto psicológico encontre uma solução hormonal e cirúrgica, que uma alteração corporal seja um remédio para um questionamento de identidade, no caso de pessoas em pleno desenvolvimento físico e psicológico, como é o caso da adolescência.” (Masson, C., 2024, p.2)
E uma primeira questão me veio à mente:
De que modo o aumento súbito das exigências de transição por parte de uma população específica, os jovens adolescentes, constitui a expressão de um sofrimento intrinsecamente ligado às mudanças psicológicas internas específicas da puberdade, ligadas a um contexto social específico?
O diagnóstico de “disforia de género” (DSM IV) surgiu em 2015 para substituir o “transexualismo”, considerado discriminatório, e descreve o sofrimento de uma pessoa que se identifica como transgénero ao expressar um sentimento de inadequação ou incongruência entre o seu “sexo atribuído” e a sua “identidade de género”.
Mas o termo “sexo atribuído” é completamente absurdo. O sexo é uma realidade biológica, não uma escolha. Os biólogos sempre reconheceram que existem apenas dois sexos: o masculino e o feminino. Não podemos falar de “sexo atribuído à nascença”, não é uma questão de julgamento. Graças aos gâmetas, aos cromossomas e às características sexuais primárias e secundárias, na maioria dos casos é impossível cometer um erro no nascimento.
A ideia de que “o sexo é um espectro” ou que as crianças podem escolher o sexo que preferem é pura ideologia, uma ficção em que alguns médicos acreditaram.
É também o que defendem Claudine Junien e Peggy Sastre, respetivamente professoras de genética médica e filosofia da ciência, no seu artigo “Nasce-se mulher, não se torna mulher” (2017), invertendo a célebre frase de Simone de Beauvoir “Não se nasce mulher, não se torna mulher”. Geneticamente, a semelhança entre dois homens e duas mulheres é de 99,9%, mas entre um homem e uma mulher é de apenas 98,3%, menos do que a semelhança entre um humano e um chimpanzé do mesmo sexo! Cada célula do embrião contém 23 pares de cromossomas e tem um sexo determinado na conceção pelo par de cromossomas sexuais. Toda a gente sabe disso, mas continuamos a achar que as diferenças são “hormonais” ou ligadas ao “género” ditado pelo ambiente. (Junien e Sastre, 2017)
Na conferência de Paris, a riqueza da discussão interdisciplinar destinada a compreender este súbito aumento da expressão sintomática estimulou a minha livre associação:
(1) A angústia da puberdade é legítima e normal, todos sabemos como a questão adolescente começa na puberdade com a transformação do corpo, que põe a nu a identidade sexual com o surgimento de características sexuais secundárias, e a necessidade de se livrar da omnipotência da bissexualidade infantil (Lamoureux, 2024). E, ao mesmo tempo, um corpo que se transforma subitamente, tornando-se num corpo estranho que terá de ser integrado na identidade do jovem. Para muitos, esta é uma ansiedade normal da puberdade, um conflito entre o “eu” e o corpo estranho, para o qual a medicina do século XXI encontrará em breve uma solução. Uma ansiedade de identidade puberal, que não teve tempo de se desenvolver e para a qual as redes sociais, impulsionadas pela internet e pelas redes sociais, rapidamente encontraram um nome: “Se se sente mal com o seu corpo, é porque é do sexo errado”. O desamparo da infância ressurge na adolescência sem tempo para a elaboração, porque afinal, “posso escolher o meu género, o meu corpo e, ao mesmo tempo, manter a minha bissexualidade da infância”. O lobby trans reforça esta omnipotência ao falar da possibilidade de autodeterminação do sexo, o que implica simultaneamente negar a origem e a filiação. Será esta então uma forma tendenciosa de vencer a luta dos adolescentes pela autonomia parental e pela separação dos objectos da infância?
(2) Outros mencionaram a influência da omnipotência social actual, tudo ao clique de um botão, ligando-a à ideia de omnipotência contra a finitude: bloquear a puberdade seria recusar-se a crescer, recusar-se a ser adulto, numa luta contra a morte. E lembrei-me da moda actual de tantas raparigas púberes, preocupadas com os cuidados com a pele, o consumo aditivo de cremes e outros produtos faciais, não para melhorar a aparência ou esconder manchas, mas para evitar rugas no futuro… Eu própria, mãe de duas adolescentes que também correm o risco de serem envenenadas por esta moda, olho para a minha adolescência e lembro-me de quanto, pelo contrário, queríamos crescer depressa, e de quantas vezes menti sobre a minha idade fingindo ser mais velha…
(3) Outros ainda enfatizaram o fracasso do pai, num mundo que estava a deixar a sua forma piramidal para se tornar horizontal – toda a verticalidade e toda a assimetria se tornaram insuportáveis. O conflito geracional deixou de ser uma oposição à geração anterior e passou a ser uma rejeição da mesma. “Nativos digitais” convencidos de que não têm mais nada a aprender com os mais velhos, uma vez que todo o conhecimento está à distância de um clique na internet, confundindo informação desproporcional com conhecimento, e conhecimento com sabedoria. Mas também, o fracasso do pai, numa sociedade que já não estabelece proibições e já não impõe os limites da realidade. A realidade torna-se individual e modificável à medida que a vontade, o desejo e a subjetividade a substituem, consequência de uma sociedade individualista, mas também das relações nas redes sociais, que, ao contrário das relações presenciais, não têm de ser negociadas nem se encontram compromissos. Não, nas redes sociais, os amigos irritantes podem ser apagados e rapidamente substituídos por outros.
De um modo geral, tem havido um protesto contra esta ideologia social, para a qual os direitos das crianças significam agora que podem fazer o que quiserem com o seu corpo. Não se podem prostituir, mas podem mudar os seus corpos!
Tal como no meu país, só se pode votar aos 18 anos, mas pode-se alterar o estado civil aos 16…
Uma criança abandonada à sua sorte, obrigada a autodeterminar-se (escolher o seu género), impedida de crescer (e de se diferenciar) por esbarrar em limites difíceis de ultrapassar, um adolescente sem bases para construir a sua identidade. Uma casa sem paredes não pode crescer…
Estaria Freud enganado quando escreveu em “O Mal-Estar na Civilização” (1930) que “o indivíduo deve gerir o conflito entre os seus impulsos individuais e as exigências da sociedade”?
Mas porquê adolescentes?
Os psicanalistas Céline Masson, Caroline Eliacheff, Thierry Delcourt, a psicóloga Paméla Grignon e o linguista Jean Szlamowicz preferem chamar a esta disforia de género nos adolescentes ansiedade sexual puberal ou ASP, propondo uma nova nosologia (Masson, 2024).
A disforia de género típica é rara e ocorre, geralmente, em rapazes que, desde muito jovens (3 ou 4 anos), sentem que são raparigas. Um sentimento muito forte, que não se altera à medida que crescemos.
A ansiedade de género na puberdade é muito diferente: afecta principalmente as raparigas na puberdade (12 a 13 anos), o pedido de mudança de género é relativamente repentino (“Disforia de Género de Início Rápido”) e o número de casos aumentou drasticamente nos últimos dez anos. Caracteriza-se por uma rejeição maciça e persistente das alterações corporais, que ocorre com o aparecimento de características sexuais secundárias.
Ouvir esta nova definição leva-me numa viagem de 25 anos no tempo para pensar na “ansiedade de sexualidade puberal” que tenho observado em tantos adolescentes que sofrem de anorexia nervosa…
Embora a sua expressão sintomática, que também se manifesta com o início da puberdade, tenha contornos completamente distintos da disforia de género, a adolescente anoréctica procura a magreza como forma de evitar as formas femininas e a genitalidade, mantendo um lugar infantil.
Maria conta: “Quando chegou a minha menstruação e comecei a ter mamas, senti que não gostava de mim nem do meu corpo, e decidi perder peso. Olhei para o espelho e não gostei da minha aparência. Desde os 14 anos que me achava feia, uma adolescente horrível, achava que as outras eram muito mais bonitas do que eu.”
E questionei-me se a disforia de género nos adolescentes não será mais uma expressão do mesmo problema: a incapacidade de completar o processo da adolescência, a rejeição da identificação materno-feminina pela rejeição do corpo feminino, pela dificuldade em elaborar a separação dos objetos da infância, numa sociedade que se alterou nos últimos anos, com o aparecimento do mundo digital, os avanços tecnológicos e médicos, e a omnipotência a eles associada?
Uma segunda questão me veio à mente:
Na “ansiedade de sexuação puberal” do adolescente, somos confrontados com uma nova entidade clínica, criada pela sociedade do século XXI, ou com outro nome, criado pela ideologia de género, para um problema que já existia?
6.º Ansiedade sexual puberal na anorexia?
Mais diagnósticos criam mais pacientes…, como vemos no atual crescimento do autismo ou hiperatividade nas crianças.
“Mas o autismo já não é o mesmo”, disse-me recentemente um colega com 30 anos de experiência a trabalhar com crianças autistas. “Antes, era uma insuficiência social; agora, é uma espécie de falta de interesse pelos outros.” O mesmo colega contou-me: “Entrei na sala de espera com mães de bebés normais (prematuros) dos 6 meses aos 3 anos. Para passar o tempo, um ecrã exibia um vídeo sobre a importância da brincadeira infantil. Mas todas as mães, sem exceção, estavam a olhar para os seus telemóveis, enquanto os bebés, nos seus berços, olhavam para o vazio.” Aproxima-se das mães e diz, em tom de brincadeira: “Então, ninguém fala com bebés?” Mas nenhuma mãe ficou chateada, culpada ou surpreendida, continuaram a fazer a mesma coisa, a olhar para o telemóvel… A minha colega aproxima-se então dos berços e vê os bebés a olhar para ela, ávidos de atenção, exibindo um sorriso preocupado, que quase lhe traz lágrimas aos olhos, perante estes bebés abandonados pelas mães…
Estamos a criar adolescentes que tiveram pouco contacto com os pais? Quem precisa do olhar dos outros para o ajudar a negar este feminino insuportável?
Um corpo que permanece estranho na ausência de relações sociais identificadoras, num mundo virtual desencarnado?
Foi aí que as diferenças entre disforia de género e anorexia começaram a ficar claras para mim…
Ao contrário da disforia de género, na anorexia, este problema de recusar o materno, de lutar contra o corpo feminino, como forma de diferenciar o materno, é inconsciente e mascarado por uma necessidade de magreza. Na disforia de género (ou ansiedade sexual puberal), ela é real e exigente. Recusa de nomeação e de nomeação.
A anoréctica procura controlar os impulsos de dependência/voracidade, numa luta contra a dependência do objecto materno, da magreza e do corpo da criança, com benefícios secundários para manter a dependência. Na dinâmica terapêutica Transferência-Contratransferência, encontramos esta mesma oscilação entre aproximação/distanciamento, apoiada na racionalização e nas defesas obsessivas, e o foco do problema na alimentação surge como um factor protector.
O adolescente que sofre de “ansiedade sexual puberal” exige uma passagem literal à acção, a separação do objecto materno é ainda mais radical. Muitas deixam de falar com as mães, mudam-se e juntam-se a grupos TRANS. No movimento transferência-contratransferência, esta recusa do analista apresenta-se como uma impossibilidade de compreensão dos significados, uma oposição radical a qualquer questionamento (sentido como transfobia, ou incapacidade de compreensão), uma desvalorização do terapeuta e do seu saber, um cancelamento da hierarquia simbólica, tão grande parece a fragilidade da identidade… O literal instala-se numa confusão entre signo e símbolo: “se não gosto dos meus seios, ou das minhas ancas, é porque tenho de os tirar; se me sinto estranho com as minhas características femininas, é porque sou masculino”. Não há espaço para a bissexualidade psíquica, nem para o simbólico.
Na anorexia, surge a questão narcisista: “O meu corpo feminino é feio, por isso ninguém me ama”. O adjetivo (feio/bonito) é acrescentado ao corpo, referindo-se à inadequação do objeto.
Na disforia de género, coloca-se a questão da identidade: “Este não é o meu corpo”, deve o corpo estranho, impossível de transformar, ser removido, remetendo para a ausência do objeto?
Na anorexia, é uma distorção subjetiva da própria visão (um corpo magro que ela considera gordo). Todos a vêem como magra, mas ela insiste que é gorda. A identificação projetiva surge da distorção da imagem corporal do corpo magro de alguém. O corpo gordo torna-se então o resultado da negação e da projecção de uma voracidade emocional, marca da dependência infantil dos objectos primários e da idealização de um corpo magro, sem necessidade de alimento/outros.
Na disforia de género, é a distorção imposta ao olhar do outro, é o olhar do outro que deve coincidir com o seu, atestando uma diferença mais radical e insuportável e a necessidade de separação: o nome, o género no olhar do outro deve confirmar a sua subjetividade, mesmo que para isso seja necessário mudar a realidade (omnipotência). A exterioridade – a realidade do sexo e a subjetividade do outro – é anulada, e a sua subjetividade (desejo, idealização, negação da realidade) é imposta: “Então eu não me sinto mulher, tu não me podes ver como mulher”. Surge o ódio ao feminino, a recusa do simbólico e o cancelamento da diferença — “deves ver-me como eu me quero ver”.
- O corpo sofredor como espelho social
Se no século XIX-XX foi o corpo simbólico da patologia histérica, a proibição e a repressão da sexualidade que levaram à criação da Psicanálise, na década de 1980, o sociólogo Lipovetsky (1983) fala de uma sociedade ocidental narcisista, ligada à abundância material e à importância do consumo, mas também ao sucesso — “valemos mais pelo que temos do que pelo que somos” —, a sociedade moral tornara-se uma sociedade de valores, de competição e de individualismo, terreno fértil para o surgimento de patologias narcisistas e borderline, anorexia e outras patologias aditivas.
Maria diz: “Não sei o que é ser mulher… uma pessoa magra… Não sei muito bem. Quem aparece na televisão é todo magro, as modelos, queria parecer-me com elas.”
O corpo tornou-se um objeto de valor narcisista, numa sociedade que valoriza a independência e o sucesso, não deixando espaço para a vulnerabilidade. Ser magra é ser uma mulher independente e bem-sucedida que tem controlo sobre a sua fome/desejo oral.
Onde estamos hoje?
No século XXI, surge um espaço virtual desencarnado: um ecrã que cria um espaço bidimensional e omnipotente em vez de um espaço intermédio e simbólico, um terreno fértil para o surgimento de um corpo literal e omnipotente.
O corpo como espelho do paradoxo deste século XXI, que privilegia a liberdade/vontade do sujeito, onde o corpo e a identidade se tornam descartáveis e modificáveis — seja a cor dos cabelos, dos seios, das rugas, ou mesmo a escolha do sexo e da cor dos olhos do bebé nas novas técnicas reprodutivas, seja o sexo biológico —, contrastando fortemente com a falta de liberdade de pensamento que predomina neste espaço TRANS, onde tentar compreender é recusar e condenar, ser chamado de transfóbico, num universo paranóico e inflexível, e muito binário: “ou estás comigo ou contra mim”. A binariedade de género é rejeitada, mas o pensamento é binário, o que talvez torne o trabalho psicológico do adolescente muito mais difícil…
Termino este artigo com uma frase de um livro muito importante publicado este ano – The Anxious Generation: How the Great Childhood Revival Causes an Epidemic of Mental Illness (Haidt, Jonathan, 2024) – que atesta e compreende o aumento exponencial da depressão e da ansiedade entre os jovens de 2010 a 2015.
“Esta é uma profunda transformação de consciência e de relações humanas que ocorreu para os adolescentes americanos entre 2010 e 2015. É o nascimento da infância do telefone. Marca o fim definitivo da infância lúdica.”
Referências
Argentiéri, S. (2009). Travestismo, Transexualismo, transgéneros: identificação e imitação. In Jornal de Psicanálise, 42 (77): 167-185.
Bell, D (2021). Do Not Adjust Your Set. Psychoanalytic Reflections on the Explosion in Incidence of Gender Dysphoria in Children and Adolescents. FEP, Bulletin 75, 2021.
Freud, S (1930). O Mal-Estar na Civilização. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud – Vol. XX, p. 73 – I48. Rio de Janeiro: Imago
Masson, C. (2024) et al.. L’Angoisse de Sexuation Pubertaire – ASP, Une nouvelle proposition Clinique. Revue Psychiatrie Francaise en ligne (2024).
Junien, C.; Sastre, P. (2017): On nait femme, on ne devient pas. Journal Le Monde, (April 11th)
Lipovetsky (1983). A Era do Vazio. Ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Edições 70, 2013.
Lamoureux, C. (2024). L’expression de la souffrance chez les adolescentes en demande de transition de genre. Mémoire de Recherche en vue de l’obtention du Diplôme de Psychologue: École des Psychologues Praticiens – Institut Catholique de Paris.