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Os dramas de quem mudou de sexo e se arrependeu.

Artigo publicado na Sábado

Por Marisa Antunes

Médicos e psicólogos estão preocupados com a rapidez dos processos e pedem cautela. Há ativistas que se queixam de pressão e casos de quem diz que cometeu um erro.

Com 22 anos, T. chegou à conclusão de que cometeu um erro terrível – mudou de sexo. Não fez “a” cirurgia em Portugal, apesar de ter começado o processo cá. Escolheu a Turquia, país que tem apostado nesta indústria, porque as cirurgias de redesignação de sexo – assim se chamam – são mais baratas. Hoje falar com T. é missão impossível, a entrevista é feita com a mãe, que deixou de trabalhar para cuidar do filho. O jovem está de rastos. Há meses encharcado em antidepressivos que não parecem estar a surtir grande efeito, não sai de casa, por vezes nem do quarto. A decisão drástica da mãe tem uma razão: o receio de que o jovem atente contra a própria vida depois da intervenção radical que sofreu e que ainda não conseguiu assimilar.

T. retirou o pénis e os testículos e foi criado no seu lugar uma genitália similar a uma vagina. A remoção do pénis foi feita numa clínica em Istambul “após um processo-relâmpago de confirmação do autodiagnóstico de disforia de género e prescrição de estrogénio que se iniciou ainda em Portugal, no SNS”, acusa a mãe.

A “felicidade” só poderia ser alcançada com a transformação completa e esperar no SNS (pode demorar em média quatro a cinco anos) estava fora de questão, tal era a urgência de concretizar a cirurgia, recorda a mãe. O jovem nunca demonstrou sinais de incongruência de género até há cerca de três anos, quando já não lhe bastava ser um “gay efeminado”, conta a mãe, em lágrimas. “É terrível, é avassalador… Todo o processo foi absurdamente rápido. Os médicos assinaram de cruz as ideias que ele foi buscar à Internet”, acusa ainda.

O arrependimento, diz a mãe, aconteceu ainda no bloco operatório da clínica em Istambul, segundos antes de adormecer, já com a anestesia injetada. O cirurgião relativizou o seu estado inquieto considerando ser apenas um “ataque de ansiedade”. Quando acordou, já era tarde demais. T. é um exemplo da rapidez com que alguns destes processos estão a acontecer no mundo ocidental – e há vários médicos preocupados.

Os casos de jovens diagnosticados com disforia de género dispararam (ver caixa). Dados cedidos à SÁBADO pelo Ministério da Saúde mostram que entre 2018 e 2022 foram realizadas 258 cirurgias genitais para mudança de sexo, ou seja, uma média de uma por semana. Estes números referem-se aos dois hospitais púbicos onde são realizadas cirurgias de redesignação de sexo, ou seja, mudança – o Hospital de Santo António, no Porto, e a Unidade Reconstrutiva Génito-Urinária e Sexual (URGUS) do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra.


Médicos preocupados

As consultas necessárias para encetar o processo de mudança nestes dois hospitais também dispararam – o acréscimo foi de 280% nos últimos cinco anos. Das 343 consultas realizadas em 2018 passou-se para 1.306 em 2022, num total de 3.741 consultas ao longo dos últimos cinco anos.

C., de 19 anos, também é um dos casos que demonstra a rapidez dos processos. Quatro consultas espaçadas ao longo de seis meses validaram-lhe o autodiagnóstico de trans e iniciaram o processo de transição, estando agora em lista de espera para a realização da mastectomia bilateral com o intuito de masculinizar o peito. Há pouco mais de um ano iniciou a toma de testosterona prescrita num hospital público de Lisboa (na capital as consultas de género funcionam no Santa Ma- ria e no antigo Júlio de Matos) e há dois meses fez a histerectomia (intervenção cirúrgica que consiste na remoção do útero).

Foi depois da separação dos pais e da pandemia, com os sucessivos confinamentos e longas horas de Internet, que decidiu mudar o rumo da sua vida. “Descobri que era trans, um processo de autodescoberta que deu sentido a muitas das dúvidas que tinha”, afiança à SÁBADO. “Eu era uma maria-rapaz, como os meus pais me chamavam… Isto porque sempre odiei vestidos e bonecas, adorava jogar à bola com os meus amigos. Mas, é verdade, não sentia qualquer problema com o meu corpo…”, admite, numa entrevista que decorre com os pais presentes.

A partir dos 16 anos, afirma C., com convicção, começou o processo de transição. As hormonas já se fazem notar na voz, que se tornou mais grave e nos pelos alourados que lhe cobrem a face ainda infantil. C. encaixa no perfil-padrão das pessoas transgénero que estão a chegar aos médicos de família e aos consultórios dos psicólogos – nasceram raparigas, são muito jovens, sentiram desconforto com o seu corpo ao atingir a puberdade e passaram por momentos depressivos no pós-pandemia, explicam os especialistas. Mas muitos médicos portugueses começam a revelar a sua preocupação com o fluxo de casos trans, principalmente entre os mais jovens.

A endocrinologista Isabel do Carmo, que acompanha vários transgénero no seu consultório, a esmagadora maioria em idade madura, não hesita em dizer que é preciso “rigor” nestes processos e pede atenção “às campanhas ocultas que existem na Net, nas redes sociais”, uma vez que “a complexidade da transição é grande e implica uma transformação orgânica definitiva da pessoa”.

O psiquiatra Carlos Nunes Filipe, professor na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova, critica também o facilitismo do autodiagnóstico e lamenta que algo tão sério “esteja a ser politizado”. O especialista sublinha ainda “que não basta a vontade da pessoa para fazer a transição pois esta é, muitas vezes, influenciada por situações que têm de ser avaliadas com muito rigor e tempo”. Do psicólogo João Santos, da PelviClinic, chega uma outra chamada de atenção – há consultas de género no SNS “que não duram mais do que 15 minutos”.

Este disparar de números em Portugal já atraiu até a atenção de organizações como a Genspect, que reúne profissionais da saúde mental de todo o mundo e também trans e detrans (pessoas que desistem do processo de mudança de sexo). A associação, cofundada pela irlandesa Stella O’Malley, tem já marcada uma conferência em Lisboa, no próximo mês de setembro, para alertar para os riscos das terapias hormonais e das cirurgias de redesignação de sexo e para a necessidade de uma triagem mais fina nos diagnósticos de disforia.

Muitas das histórias que passam pela Genspect partilham uma tónica comum – o impacto do contágio social online nesta nova vaga de pessoas transgénero. “A associação do contágio social com a adolescência e principalmente entre as raparigas, há muito que está bem estabelecida em relação a outros fenómenos como a anorexia, bulimia ou os comportamentos autolesivos. Fingir que a disforia de género é diferente e não sofre impacto pelo contágio social significa apenas que as pessoas têm medo de dizer a verdade”, sublinha à SÁBADO a psicoterapeuta Stella O’Malley, autora do livro When Kids Say They’re Trans: A guide for thoughtful parents [quando os miúdos dizem que são trans: um guia para pais conscientes], escrito em coautoria com Sasha Ayad e Lisa Marchiano. A especialista lamenta ainda a ausência de vontade das autoridades de Saúde em Portugal para estudar o fenómeno da destransição, que, ao contrário do que muitos querem fazer crer, “está longe de ser residual”.

Já a psiquiatra Zélia Figueiredo, coordenadora do grupo de acompanhamento da implementação da Estratégia de Saúde para as pessoas LGBTI (que está a ser implementada nos centros de saúde) conta que no espaço de seis meses uma pessoa que procure o SNS e se assuma como trans pode começar a tomar testosterona (se for rapariga) ou estrogénio (se for rapaz). Uma celeridade e uma desburocratização do processo que aplaude tendo em conta a necessidade de mitigar o sofrimento das pessoas. “Já existe a lei da autodeterminação de género, a pessoa sabe quem é. Ainda assim, vai haver alguém que vai dizer se ela pode ou não fazer os tratamentos.”

Com uma longa experiência junto da comunidade transgénero, pela médica já passaram mais de 700 pacientes que acompanhou, a maioria no hospital psiquiátrico Magalhães Lemos, no Porto. Ainda que reformada desde maio de 2022 das consultas de sexologia naquele hospital, atualmente está a substituir uma colega que está em baixa de parto no Hospital de Santo António, por isso confirma a tendência de crescimento. Zélia Figueiredo dá os dados estatísticos das suas próprias consultas revelando que só em 2021 recebeu “135 primeiras marcações”, mais do dobro das que tinha, por exemplo, no período pré-pandémico, em 2019, em que somou 63 novos pacientes. Até maio de 2022, altura em que se reformou, recebia uma média de nove novos pacientes trans por mês. Agora, também nota uma alteração. “Chego a receber por semana quatro a cinco primeiras consultas. A maioria são rapazes trans (nasceram raparigas e querem mudar para rapazes) mas, desde a pandemia, o número de raparigas trans (rapazes a mudar para raparigas) também aumentou”, diz.

O perfil etário também está a mudar. “Agora são cada vez mais jovens e comecei a receber também menores da pedopsiquiatria para reduzir as listas de espera”, diz a médica, que atribui o aumento exponencial dos números a uma “maior informação por parte dos adolescentes”. Questionada sobre a onda crescente de pessoas, em vários países ocidentais, que se arrependeram e resolveram fazer a destransição, a porta-voz do Ministério da Saúde para as questões identitárias garante que não conhece situações similares em Portugal.

Apesar de por cá o tema se manter ainda envolto num manto de silêncio, percebe-se que a sua abordagem na prática clínica é sensível. O ex-presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, António Reis Marques, alerta para os riscos da precipitação de diagnósticos. “Um profissional que faz uma terapia desse tipo, que pode ser irreversível a uma criança ou a um jovem adulto e que por sua vez pode estar em mecanismo de fuga, de negação de sexualidade, ou por milhentos outros fatores, quando este se depara com a sua incapacidade, com a sua alteração feita de forma leviana, penso que isso é má prática”, sublinha. E vai mais longe: “Não devemos ser comandados pelo utente, devemos dar atenção ao que se passa com ele, sim, mas também perceber se as opções que toma são fundamentadas, maduras e de alguma maneira refletidas e não à primeira influência.” destaca à SÁBADO. O psiquiatra refere a importância de “reconhecer se não há outros fatores, traumas ou outras dificuldades de origem psicológica que estejam por trás destas opções ou pseudo-opções”.

Não existem estatísticas sobre quantas pessoas se arrependeram, mas no reddit detrans, rede social onde se partilham desabafos dramáticos destes casos, o número de utilizadores passou dos 9 mil para mais de 51 mil em apenas quatro anos. Muitas destas pessoas têm em comum a existência de psicopatologias associadas, algumas nunca exploradas pelos clínicos, entre as quais a depressão grave, dismorfia corporal, traumas derivados de abusos sexuais, entre muitas outras.

João Santos, psicólogo da PelviClinic, uma das clínicas privadas recomendadas pelas associações LGBT aos jovens com dúvidas de identidade, alerta para a necessidade de tempo para se apurar um diagnóstico. “É importante não saltar etapas porque pode ajudar algumas pessoas, mas fazer muito mal a outras.” E continua a espantar-se, diz, com os casos que lhe chegam, vindos do SNS, com diagnósticos-relâmpago de disforia de género: “Surgem-me pessoas com apenas seis sessões de 15 minutos cada, no SNS. Percebo que existam condicionalismos no SNS, mas este tipo de consultas não permitem conhecer a pessoa e estabelecer uma relação terapêutica”, diz o psicólogo da PelviClinic, que viu a afluência duplicar com a pandemia. Perante estes alertas, a SÁBADO contactou o Ministério da Saúde, mas até ao fecho desta edição não obteve resposta.

De vítima a ativista

Foi a falta de tempo para apurar o seu diagnóstico que Collin Silva da Costa lamenta, uma revolta que resolveu não calar para “alertar outros”. Nasceu menina, numa família pobre do interior do Brasil, e cedo percebeu que era “diferente” dos outros. “Não demonstrava interesse nos brinquedos, nas roupas que me queriam colocar, mas nunca senti disforia”, diz à SÁBADO. Aos 19 anos, já na universidade, longe da mãe autoritária, resolveu dar largas à sua necessidade de expressão. “Cortei o cabelo, troquei de nome, senti muito apoio dos meus amigos LGBT, mas nessa altura também sofri violência sexual por parte de um colega da universidade… Aí caí num processo depressivo profundo”, relembra Collin, acrescentando que só então passou a sentir “nojo” do corpo.

O impacto da violação nunca seria, porém, analisado quando o “psicólogo, especializado em pessoas LGBT” lhe deu o livre trânsito para os tratamentos hormonais no Brasil. Apesar de nunca ter feito cirurgias, o impacto hormonal “destruiu” o seu corpo, diz. “Engordei bastante, o meu clitóris começou a crescer, o aspeto do meu rosto começou a mudar e eu não me reconhecia mais… O uso dos hormónios [hormonas] acabou também por sobrecarregar o meu fígado a ponto da endocrinologista me perguntar se eu bebia!”

Atualmente, é através das redes sociais que Collin tenta alertar para os efeitos de uma transição irrefletida. “Muitas das pessoas que fazem transição são bem jovens e não fazem ideia das consequências que esse processo lhes vai trazer. Muitas vezes, nem mesmo os médicos que os acompanham sabem porque a verdade é que tudo é ainda muito experimental”, remata.

Clínicas processadas

Os casos da americana Chloe Cole, que removeu os seios aos 15 anos e esteve em bloqueadores hormonais desde os 12, do britânico Ritchie Herron, que retirou o pénis, ou o da espanhola Susana Dominguez, que se sujeitou a uma mastectomia bilateral, são apenas alguns dos processos mais mediáticos que correm nos tribunais dos seus países de origem.

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