Artigo publicado no Diário de Notícias online
Artigo de Bruno Horta
A lei contra “terapias de conversão” de homossexuais, bissexuais e transgénero entra em vigor nesta sexta-feira e desde já colhe o “repúdio” da psicóloga Joana Amaral Dias, segundo a qual “não cabe ao Estado interferir” na relação entre pacientes e terapeutas. Quem também se opõe é o psicólogo Abel Matos Santos, que fala em “imposição ideológica” para “limitar e interferir no livre exercício da profissão”.
A lei 15/2024, de 29 de janeiro, foi aprovada em dezembro pela Assembleia da República com os votos de PS, PCP, Bloco de Esquerda, PAN, Livre e Iniciativa Liberal. PSD e Chega votaram contra. A norma altera a lei da identidade de género, de 2018, que facilita o reconhecimento legal das pessoas transgénero, tornando agora “proibidas quaisquer práticas destinadas à conversão forçada da orientação sexual, identidade ou expressão de género”.
O diploma mexe também no Código Penal e determina pena de prisão até três anos ou pena de multa para “quem submeter outra pessoa a atos que visem a alteração ou repressão da sua orientação sexual, identidade ou expressão de género, incluindo a realização ou promoção de procedimentos médico-cirúrgicos, práticas com recursos farmacológicos, psicoterapêuticos ou outros de caráter psicológico ou comportamental”. “A tentativa é punível”, lê-se.
Em face destes dados, o constitucionalista Paulo Otero, professor catedrático na Faculdade de Direito de Lisboa, garante que a lei em causa “é inconstitucional”. Desde logo porque “viola o princípio da necessidade da lei penal”, pois “criminaliza condutas de profissionais de saúde, que já resultavam de outros tipos penais”, nomeadamente a ofensa à integridade física. Além de que entra na “esfera de decisão deontológica reservada às Ordens profissionais envolvidas”, nomeadamente Ordem dos Médicos e Ordem dos Psicólogos — as quais não foram ouvidas no processo legislativo.
Logo, no dizer do jurista, a lei vem criar “uma garantia jurídico-criminal de uma determinada ideologia”. “Criminalizar uma conduta atentatória de uma ideologia, além de revelar a ausência de necessidade de intervenção da lei penal, é uma ação típica de Estados totalitários”, acusa Paulo Otero.
Já a especialista em Direito Penal Fernanda Palma, também catedrática da Faculdade de Direito de Lisboa, explica que esta é “uma lei justificada”. “Embora se pudesse já incluir estes comportamentos nas ofensas à integridade física, a verdade é que se trata de uma dimensão do ser humano que se impôs mais recentemente e por isso tem cabimento o seu tratamento autónomo, como afirmação de uma dimensão específica da dignidade da pessoa”.
A lei não prevê o consentimento livre e informado. Dois dos projetos que lhe deram origem, o do Bloco e o do Livre, referiam-se a consentimento (ver texto “Os projetos que deram origem à lei”). Quando o diploma foi discutido em comissão parlamentar, teve duas versões provisórias que também previam o consentimento. Mas a palavra desapareceu do texto em vésperas da votação final global, mostram os registos públicos da Assembleia da República.
No dizer de Joana Amaral Dias, esta lei “faz-nos entrar em território pantanoso” porque “ajuda a galvanizar pessoas que por uma razão ou por outra estão desconfortáveis com a sua sexualidade para serem soldados disponíveis para a conflitualidade social, neste caso contra os seus próprios técnicos de saúde”. A antiga dirigente e deputada do Bloco de Esquerda (2002 a 2005), partido do qual se desvinculou há uma década, afirma que o diploma “abre a porta a queixas de pacientes contra psicólogos ou psiquiatras”, ao mesmo tempo que “exerce uma pressão explícita” sobre os clínicos.
“Colegas com quem tenho trocado impressões dizem-me que já se sentem condicionados. Começam a ter receio de tratar casos, aliás muito frequentes, de adolescentes atraídos por pessoas do mesmo sexo e que se sentem incomodados com isso”, destaca Joana Amaral Dias. “Com esta ingerência estamos a abrir a porta a outras ingerências ao estilo dos regimes totalitários”, acrescenta. “O que se passa dentro de um consultório, num contexto clínico, é sigiloso e tem de ser tratado com respeito. Qualquer pedido explícito de ajuda que o paciente faz é para ser trabalhado com o psicólogo”.
Joana Amaral Dias prefere usar neste contexto a expressão “preferência sexual”, que se tornou criticável, em vez de “orientação sexual”, considerada consensual, porque esta última “é muito definitiva e está carregada de equívocos epistemológicos e científicos”. Defende que “as pessoas têm o direito a não estar satisfeitas com as suas preferências sexuais e têm o direito de pedir ajuda para mudarem essas preferências”. Têm também o “direito de o fazer” num contexto de “segurança, confiança e sigilo”, num “espaço almofadado e de contenção que é o de um consultório”.
Para o psicólogo clínico Abel Matos Santos, esta lei “limita e interfere no livre exercício da profissão”, pelo que é “iníqua” e “nem deve existir”. “Limita e constrange a atividade profissional, afasta os profissionais de quererem acompanhar certos pacientes, ainda que sejam procurados livremente por eles, para que não venham a ser criminalizados e perseguidos por alegadas más práticas profissionais”, sublinha.
“Uma sociedade e um Estado que legislam para criminalizar profissionais de saúde devidamente habilitados que não se formatem às ideologias que o legislador quer impor, ainda que esses profissionais estejam em total conformidade com as regras deontológicas, é um Estado falhado e uma sociedade em decadência”, conclui Abel Matos Santos, que já foi vice-presidente do CDS e candidato à presidência do partido.
Enfatiza ainda que a lei é “inespecífica e vaga” por falar em “terapias de conversão” e em “atos contrários à orientação sexual, identidade ou expressão de género” sem os definir com densidade. “Tudo isto demonstra ignorância e um desejo de uma imposição ideológica que é política e social e não assente na ciência e nas boas práticas”.
Do ponto de vista jurídico, o constitucionalista Paulo Otero não tem dúvidas de que o normativo que agora entra em vigor “é inconstitucional e qualquer tribunal tem o poder e o dever de recusar a sua aplicação, podendo qualquer interessado que seja por ela lesado suscitar a fiscalização difusa da constitucionalidade”. “Não pode deixar de se lamentar que o Presidente da República não tenha suscitado a fiscalização preventiva do diploma junto do Tribunal Constitucional ou, em alternativa, utilizado o veto político”, afirma.
Sustenta que esta lei “viola a autonomia da vontade e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade dos indivíduos” porque “responsabiliza sempre os profissionais de saúde pela prática de tais atos, ainda que os destinatários nelas consintam”. E apresenta outro argumento contra: “Viola os princípios da determinabilidade da lei e da reserva de lei, isto no relevante domínio criminal, uma vez que remete para decisão administrativa a densificação do que sejam atos ou condutas que visem a alteração, limitação ou repressão da orientação sexual, da identidade ou expressão de género”.
A penalista Fernanda Palma não poderia estar mais em desacordo. Ao DN reconhece “relativa indeterminação” do termo “terapias de conversão” e entende que neste particular a lei “deveria ser mais pormenorizada”, pois pode estar a excluir “intervenções de tipo religioso ou culturais sistematizadas”. “Reconheço que não é fácil encontrar uma redação mais precisa. A intenção do legislador foi aparentemente colocar o problema apenas no campo de intervenções socialmente identificáveis como médicas”.
Ainda assim, a catedrática e investigadora da Faculdade de Direito é favorável ao diploma. “Considero ser uma lei justificada, pois há uma dimensão que ultrapassa a saúde e que atinge um dos aspetos nucleares da pessoa, da identidade como simbiose de corpo, mente e reconhecimento pelos outros em sociedade”.
A ausência da noção de consentimento informado não prejudica a norma, nota Fernanda Palma. “Poderia ser incluída, mas já está até certo ponto absorvida”, pois uma das alíneas clarifica que “não são puníveis os procedimentos aplicados no contexto da autodeterminação da identidade e expressão de género” que “forem levados a cabo de acordo com as leges artis””, isto é, as boas práticas.
“Terapias de conversão” começaram a ser proibidas há oito anos
s contra “terapias de conversão” começaram a surgir na Europa a partir de 2016, primeiramente em Malta e em Espanha (Madrid e Múrcia), estendendo-se depois à Alemanha (2020), à Grécia e a França (2022), à Bélgica (2023) e a outros países. Nem todas as leis criminalizam as “terapias de conversão”, mas o espírito dos diplomas é semelhante ao português.
“Estas intervenções continuam a ser praticadas na Europa, muitas vezes legalmente e geralmente sob pretexto médico ou religioso”, diz um relatório de fevereiro do ano passado da comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa. “Apesar das consequências nefastas, profundas e duradouras, é difícil para as vítimas verem reconhecidos os danos sofridos e obterem compensação”, escreveu Dunja Mijatovic.
Uma resolução de fevereiro de 2021 da Associação Americana de Psicologia explica que “a corrente dominante entre profissionais de saúde mental rejeita desde a década de 70” os “atos de mudança da orientação sexual” (“sexual orientation change efforts”, em inglês), os quais “carecem de suficiente base científica”.
O mesmo documento define os “atos de mudança da orientação sexual” como “várias técnicas de diversos profissionais de saúde mental, e de não-profissionais, com o objetivo de mudar a orientação sexual no todo em parte”, mas também a identidade e a expressão de género. Tais “atos” podem ter lugar em reuniões, conferências ou grupos online e tomam a forma de recomendações para encontros com pessoas do sexo oposto, desenvolvimento de intimidade não-sexual com pessoas heterossexuais do mesmo sexo, práticas religiosas (rezas, exorcismo, confissão) e sujeição a estímulos negativos que criem aversão, diz a Associação Americana de Psicologia.
Em Portugal não há registo em anos recentes de profissionais de saúde mental que assumam semelhantes intervenções nos seus pacientes. No início dos anos 2000, o psicanalista António Coimbra de Matos (1929-2021) contou numa entrevista ao jornal Sol que tinha ajudado um paciente a aproximar-se da heterossexualidade.
“A maior parte das vezes a pessoa que aparece já se instalou na sua identidade gay, portanto vem para afinar algumas coisas. Lembro-me de outro doente. Mudou porque era homossexual, mas não se sentia bem nessa pele. Achava que tinham conseguido levá-lo por aquele caminho, mas não era a sua orientação verdadeira. E mudou”, após 14 anos de psicoterapia várias vezes por semana. “Curou-se totalmente”, afirmou António Coimbra de Matos.
Algumas destas questões surgem no filme de 2015 “O Meu Nome é Michael”, do realizador norte-americano Justin Kelly. Foi exibido pela primeira vez nos festivais de Sundance e de Berlim e teve estreia comercial em Portugal no verão de 2017. Com James Franco no papel principal, o filme baseia-se na história verídica do ativista e fundador de revistas gay Michael Glatze, que se virou para a religião e aos 32 anos anunciou publicamente que rejeitava a sua homossexualidade, pretendendo tornar-se heterossexual e pastor de uma comunidade religiosa cristã.
A história de Michael Glatze foi contada pela primeira vez em 2011 na revista do jornal The New York Times. Correntes conservadoras nos EUA, por vezes descritas como “fundamentalistas cristãs”, classificam como “ex-gays” as pessoas que alegam ter deixado de ser homossexuais.
Os projetos que deram origem à lei
A lei 15/2024 foi aprovada na Assembleia da República a 21 de dezembro por PS, PCP, Bloco de Esquerda, PAN, Livre e Iniciativa Liberal, com os votos contra de PSD e Chega. Saiu em Diário da República a 29 de janeiro e entra em vigor nesta sexta-feira, dia 1.
Na origem da lei estão projetos de Bloco, Livre, PS e PAN, que depois tiveram discussão conjunta. O projeto do Bloco foi o primeiro. Deu entrada a 17 de maio de 2022, sendo 17 de maio o Dia Internacional contra a Homofobia e a Transfobia. O Livre apresentou o seu texto a 1 de julho de 2022.
Estes projetos destacavam-se dos outros dois por preverem a noção de “consentimento”. O Bloco falava em “práticas não-consentidas de alteração das características sexuais” e o Livre referia explicitamente que “não são puníveis as práticas, do foro médico ou terapêutico, que sejam consentidas”.
Os projetos do PS e do PAN deram entrada no Parlamento a 31 de março do ano passado. O “consentimento” estava ausente de ambos e manteve-se ausente na lei que agora entra em vigor. Foram pedidos quatro pareceres: à Ordem dos Advogados, ao Conselho Superior do Ministério Público, ao Conselho Nacional de Ética Para as Ciências da Vida e ao Conselho Superior da Magistratura. Todos favoráveis, mas este último deveras cauteloso: “O presente projeto de lei está de acordo com as motivações que o determinaram e consubstancia uma opção de política legislativa”.
Votados na generalidade em abril do ano passado, antes do envio à Comissão de Assuntos Constitucionais, os quatro projetos tiveram a aprovação de PS, PSD, IL, Bloco, PAN e Livre. Abstiveram-se Chega, PCP e seis deputados socialistas: Cláudia Santos, Filipe Neto Brandão, Susana Correia, Bruno Aragão, Marcos Perestrello e Sérgio Sousa Pinto. Na votação final global, em dezembro último, só PSD e Chega votaram contra.
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