Artigo publicado no jornal Público online
Artigo de Opinião de João Miguel Tavares publicado
Há demasiada gente a confundir a confusão da adolescência com a disforia de género.
O circuito é este: todos os temas que atingem notoriedade no mundo anglo-saxónico acabam adoptados pelas elites portuguesas. Ganham expressão entre os sectores mais dados ao activismo, e depois saltam para as universidades e para as páginas dos jornais. Mesmo sendo temas de nicho, tocam em valores fundamentais, afectam políticas públicas, ganham fôlego nas redes sociais e alimentam polémicas,
como aconteceu com o caso da nomenclatura LGBTQIA+ (https://abclgbtqia.com/), uma derivada da ideologia de género e da questão trans.
Não planeava meter-me nessa conversa. A polémica começou com um texto de Pacheco Pereira (https://www.publico.pt/2022/07/09/politica/opiniao/todes-nao-2013038) e amplificou-se com uma crónica de Ricardo Araújo Pereira (https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2594/html/revista-e/estranho-oficio/a-atraccao-sexual-que-nao-ousa-dizer-o-seu-nome), provocando a reacção de muita gente.
O assunto estava bem entregue aos dois Pereiras, e eu mantinha-me quietinho no meu canto, até ler um artigo assinado por dois psicólogos (Sérgio Carvalho e Jorge Gato), intitulado Quem tem medo das pessoas trans (https://www.publico.pt/2022/08/01/p3/cronica/medopessoas-trans-2015542), com o seguinte pós-título: “Com este artigo, pretendemos esclarecer, na medida possível da nossa competência e com base na evidência científica disponível, um conjunto de crenças erradas e de preocupações infundadas em torno das questões trans.”
O que me chateou foi isto: ler um artigo profundamente ideológico a reclamar neutralidade científica.
Aquilo que os autores chamam “sentimento anti-trans” não é sentimento anti-trans coisíssima nenhuma, a não ser para meia-dúzia de idiotas de relevância pública nula. Pessoas como Pacheco Pereira ou Ricardo Araújo Pereira nunca foram homofóbicas ou transfóbicas na vida. Eles estão preocupados com o policiamento e tortura da linguagem; eu estou ainda mais preocupado com o que está a acontecer a miúdos confusos (em bom rigor, sobretudo a miúdas) que se atiram com excessiva facilidade, e sem o devido acompanhamento, para a adopção de bloqueadores de puberdade ou de tratamentos hormonais.
Este é um problema grave – e é aqui que entra a palavra Tavistock. No seu artigo, Carvalho e Gato afirmam que os bloqueadores de puberdade são “intervenções totalmente reversíveis”. É mentira. Ninguém o pode garantir. O NHS, o serviço de saúde britânico, afirma explicitamente (https://www.nhs.uk/conditions/gender-dysphoria/treatment/) que ainda não se sabe se tais bloqueadores “afectam o desenvolvimento do cérebro dos adolescentes e dos ossos das crianças”.
O excesso de voluntarismo, e a facilidade com que o activismo trans passa por cima do crescimento exponencial de pedidos num grupo muito específico (mulheres adolescentes ou jovens adultas que desejam a transição), teve este resultado em Inglaterra: o encerramento pelo NHS (https://www.bbc.com/news/uk-62335665.amp) da clínica Tavistock, a única unidade britânica dedicada às questões da identidade de género em crianças e adolescentes, após um relatório arrasador sobre falta de acompanhamento psicológico e denúncias de “abordagem afirmativa inquestionável”. Ou seja: crianças e adolescentes encaminhados para a transição sem um diagnóstico sério de disforia de género.
A isto, Sérgio Carvalho e Jorge Gato chamam “processo médico que não foi tão rigoroso quanto se desejaria”.
É difícil ter conversas sérias sobre este tema quando quem levanta o problema leva logo com o carimbo de transfóbico na testa. Só que o problema não desaparece.
Por isso, convinha que jornais como o PÚBLICO, que acompanham estas matérias, prestassem atenção a notícias como o encerramento da clínica Tavistock. Há demasiada gente a confundir a confusão da adolescência com a disforia de género.
Aconteceu em Inglaterra. Pode muito bem estar a acontecer em Portugal.
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